sábado, 18 de maio de 2013

Uma reflexão sobre o panorama museológico em Portugal

 
Saída na véspera do Dia Mundial dos Museus (in Público, 2013.05.17), concordando ou discordando pontualmente, aqui fica para debate (se é que vale a pena debater) esta reflexão de Luís Raposo (ex-director do Museu Nacional de Arqueologia, também Presidente da Comissão Nacional Portuguesa do ICOM e representante da Rede Portuguesa de Museus no Conselho Nacional de Cultura):

«Em recente Conferência Internacional sobre “Políticas Públicas para Museus em Tempos de Crise”, foi aprovada uma“Declaração de Lisboa”, subscrita por seis presidentes de comissões nacionais europeias do ICOM (Conselho Internacional dos Museus), e ainda pelos presidentes do ICOM Europa e do ICOM Mundial. Depois de assinada pelos restantes presidentes de comissões nacionais europeias, será formalmente entregue aos presidentes da Comissão e do Parlamento Europeu, assim como aos governos e parlamentos nacionais.
Dirigida aos poderes e decisores políticos, e acessoriamente aos cidadãos em geral, a “Declaração de Lisboa” (disponível em www.icom-portugal.org) constitui um apelo baseado na consigna que constituirá o mote de reflexão do próximo Dia Internacional dos Museus (18 de Maio): museus (memória + criatividade) = mudança social. Os efeitos da presente crise europeia nos museus, por enquanto especialmente visíveis em países do Sul, mas em processo de irradiação global, são ali postos em evidência. Diz-se que os cortes drásticos que afectam orçamentos públicos, e mesmo privados, estão a “colocar em risco a existência de muitos museus e suas colecções”; numerosos profissionais, especialmente os mais jovens, começam a perder os seus empregos ou a ver reduzidos os seus salários para níveis inimagináveis; em certos casos extremos, chegou-se ao ponto de em alguns países os museus “estarem agora a perder seus directores e as suas equipas técnicas”.
 
Este diagnóstico aplica-se por inteiro ao caso português. Após duas décadas de “revolução silenciosa” (talvez demasiado silenciosa…), durante as quais se deu corpo a um edifico jurídico e organizacional (com especial relevo, neste caso, para a Rede Portuguesa de Museus, entendida como plataforma cooperativa inter-pares e não como mera repartição desqualificada de organismo do Governo) que se diria sedimentado, assistimos nos últimos anos e continuamos a assistir a recuos de tantas décadas que nalguns casos remontam ao tempo em que nem sequer havia museus, ou seja, retrocedem até aos tempos da Monarquia Absoluta.
 
Falamos sobretudo de recuos conceptuais, muito mais do que financeiros. A crise tem as costas demasiado largas. Mas a verdade é que grande parte da actual desdita dos museus portugueses resulta da ignorância ou da intencional perfídia com que foram tratados nos últimos anos. A existência de museus dotados de autonomia de projecto, com equipas técnicas e direcções capazes de “dar a cara” perante os seus respectivos públicos, constituiu um desafio à mediocridade de alguns “sir humphreys” da Administração Pública, que facilmente meteram no bolso os sucessivos governantes de turno, porque em todos encontram redes de cumplicidades subterrâneas. E daí à instauração de modelos tão centralistas que fariam corar de vergonha os teóricos do Estado Novo, foi um pequeno passo, favorecido por mera retórica de poupança. A (re)construída Direcção-Geral do Património Cultural (DGPC) e as Direcções Regionais de Cultura, concebidas durante o Governo do PS e concretizadas durante o Governo do PSD/CDS, constituíram-se, de facto, no “regresso ao passado” que temíamos (cf. o nosso texto no Publico de 2 de Setembro de 2011 – “A nova DGPC: recuo ou avanço ?”), dando origem a orgânica opressiva e ineficiente, mesmo no plano financeiro. Incapaz de potenciar a contribuição significativa da chamada “sociedade civil”, que obviamente requer a proximidade e a empatia que apenas se geram em torno de cada museu, trata-se de uma estrutura que produz custos orgânicos fixos insustentáveis, como sejam os logísticos, de toda a ordem, e os salariais. Neste particular, verifica-se que a pretexto de poupanças, mas em total desrespeito das normas nacionais e internacionais que definem os museus, se chegou ao ponto de extinguir direcções de museus, trocando as poucas centenas de euros das respectivas comissões de serviço, pelos largos milhares dispendidos numa rede de comissariados, sucedânea dos governos civis, ditas direcções-regionais (que de regionais só têm o nome, uma vez que não passam de emanações do poder central), com chefias equiparadas a directores-gerais, que pouco levaria a criar e, na prática, nada agora justifica manter.
 
Dir-se-á que tudo isto se passa somente na cerca de três dezenas de serviços tutelados (até a palavra “museu” foi ali banida em certo momento) pelo secretário de Estado da Cultura (e não Secretaria das Estado, que não existe, tendo a Cultura passado de Ministério para… coisa nenhuma). Puro engano. Os efeitos desta regressão central começam a fazer-se sentir, de forma catastrófica, no plano nacional. Se os museus do Estado Central deixaram de ter qualquer grau de autonomia, se deixaram de ter mapas de pessoal e orçamentos próprios, se deixaram até de possuir número de contribuinte, sendo-lhes vedado qualquer relacionamento directo com potenciais patrocinadores, ou a adjudicação expedita de quaisquer serviços, se uma mísera lâmpada a mudar em museus no Porto ou em Coimbra, tem de ser adquirida em Lisboa, e se for em Guimarães ou em Lamego tem de ser em Vila Real, se for na Guarda ou na Nazaré, tem de ser em Coimbra (e o mesmo se passava até pouco tempo atrás com as reclamações feitas nos “livros amarelos”, que circulavam pelo País antes de serem respondidas), se em casos-limite um mesmo director pode fazer o biscate de estar à frente de museus situados a cerca de 100 km um do outro (caso de Castelo Branco e Guarda), se tudo isto e mais que fica por dizer acontece… então porque continuar a exigir das autarquias, no âmbito dos processos de credenciação de museus, que tenham lugares próprios para os museus nas suas orgânicas, mantenham directores tecnicamente habilitados, etc. ? Por nada, de facto, senão em obediência a uma Lei-Quadro de Museus Portugueses, lei de direito para constitucional, aprovada por unanimidade na Assembleia da República, que assim o obriga...
Compreende-se, pois, que neste Dia Internacional dos Museus nos venham à cabeça sobretudo as desventuras por que passam os museus portugueses. Mas, “ser museu” é acima de tudo ser “corredor de fundo”, encarando cada presente com a resiliência e o optimismo crítico de quem sabe que “atrás dos tempos, tempos virão”. Por isso, enquanto profissionais dos museus portugueses festejamos cada 18 de Maio, fazemos das fraquezas forças, promovemos inúmeras actividades, de Norte a Sul, em centenas de museus, e convidamos os nossos visitantes a estarem connosco. Afinal, o futuro dos museus está nas mãos das comunidades que neles se revejam e considerem que na criatividade das suas memórias está parte da sua felicidade, do seu progresso social.
- Luís Raposo
Presidente da Comissão Nacional do ICOM
Representante da Rede Port. de Museus no Conselho Nacional de Cultura

 

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